sexta-feira, 25 de julho de 2014

O 3D e a linguagem no cinema.




Quando o documentário de Werner Herzog “Caverna dos Sonhos Esquecidos” entrou em cartaz muita gente torceu o nariz. Afinal, o 3D era um recurso consagrado em filmes tipo blockbusters. Contudo para se afirmar que o efeito 3D no filme do Herzog não tem uma função de linguagem temos de negá-lo como um efeito de sentido. Assim, teríamos de admitir que ele não tem conteúdo pois nada expressa ao receptor da imagem.  Portanto, temos de supor que não houve nenhuma razão para que o efeito estivesse lá ou que ele não diz respeito ao espectador.
Quando F. Murnau lançou Nosferatu em 1922, ele usou uma técnica ainda bem rudimentar para dar cores ao seu filme. Ele coloriu a película ora de azul e ora de laranja. Nas cenas em que o sol ou uma luz apareciam o filme ficava laranja; nas cenas noturnas, a película tinha uma cor azulada. Murnau nunca deixou claras as suas intenções, explicando-as em um texto ou em uma entrevista. Tanto que durante anos o filme foi exibido e lançado em DVD o VHS apenas em preto e branco. Somente há alguns anos, as cópias têm sido lançadas com o embrionário colorido de Murnau; inclusive a cópia projetada no encerramento da 36ª edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Não é difícil imaginar que Murnau pretendia comunicar alguma coisa ao espectador com esses efeitos rudimentares. Mais do que marcar a luz, ou diferenciar o dia da noite – coisa que o roteiro já deixa bem claro – ele queria adicionar sentidos ao seu filme, até por isso usou alternadamente cores quentes e cores frias. Era um efeito, era uma técnica, mas era, sobretudo linguagem. Pois comunicavam algo a quem assistia ao filme. Esses efeitos
A cor no cinema nem sempre pode ser entediada como um recurso de linguagem. Alguns filmes ou programas de tevê são gravados em cores sem que os diretores tenham se preocupado com a composição do cenário com os objetos de cena nem com filtros usados nas lentes. Nesses casos a cor é apenas um recurso técnico como outro. No entanto, diretores como Krzysztof Kieslowski, Pedro Almodóvar, Tim Burton entre outros procuram usar as cores em seus filmes como um elemento a mais.
Do mesmo modo, quando Woody Allen optou por lançar Neblinas e Sombras em 1999 em preto e branco, ele queria fazer referência ao noir e acrescentar um tom sombrio à sua narrativa. Nesse caso, o preto e branco passam a ser um recurso de linguagem, já que o diretor quis premeditadamente que o espectador tivesse uma visse algo a mais quando retirou as cores. Para Allen, há uma razão para que as cores não estivessem ali, isso é técnica e é linguagem, já que tem o objetivo de transmitir uma sensação, uma ideia, um pensamento a quem está assistindo ao filme. O mesmo talvez não se possa dizer de um filme – feito em preto e branco – quando não havia a opção de fazê-lo em cores.
Por que o Herzog fez um filme 3D? É obvio que ele não queria fazer só um documentário sobre uma caverna. As figuras estavam desenhadas sobre a superfície irregular das paredes de uma caverna e não sobre uma parede de alvenaria (2D). Ele pretendia transmitir a sensação de se observar aquelas ilustrações tal qual elas foram encontradas. Se ele faz uso de uma técnica para transmitir uma sensação, ela passa a ser um efeito de sentido; portanto possui um conteúdo e expressa
Desde o sucesso mundial de Avatar de James Cameron em 2009, o efeito tridimensional, 3D, passou a ser usado em profusão em filmes de fantasia, ação, terror e aventura. A técnica é nova e por essa razão ainda é vista por alguns como rudimentar e precária. Pode ser. Mas é um caminho sem volta. O cinema terá cada vez mais filmes usando essa técnica, goste dela ou não.  
Mesmo a fotografia de um filme em preto e branco está impregnada de recursos em que

quarta-feira, 13 de maio de 2009

À procura do espírito de Pierre Ménard

Talvez vocês façam idéia do arrependimento que temos quando se marca uma mesa branca com uma cara que acredita que Pierre Ménard, um escritor que sequer existiu, é uma reencarnação de Miguel de Cervantes.

No princípio pensei que seria uma grande piada, mas depois comecei a ver que o tal de Vigatti, realmente era uma espécie de alucinado pelo assunto, ele acreditava falar com o espírito de Ménard, tanto que tinha ido a Illinois para visitar a sua casa.

Fui para casa pensando em reler o conto de Borges. No caminho me lembrara que eu havia emprestado o Ficções a um amigo; e todos nós sabemos empiricamente o que isso significa. Fui para minha casa e comecei a folhear o volume três das obras completas do Borges. O primeiro conto do Livro da Areia chama-se “O Outro”. É uma história em que o velho Jorge Luis Borges encontra o jovem Jorge Luis Borges, eles conversam e um fala ao outro como anda a vida, e o velho conta ao novo detalhes do que aconteceu com o mundo. Tudo se passa em um sonho. Depois de ler o conto comecei a pensar o que o tal de Osmar Vigatti, poderia fazer com isso. Pensei em coisas como Borges ser a reencarnação do Sobrenatural de Almeida. Dentre as teorias Absurdas que já ouvi de cientistas kardecistas, Nelson Rodrigues tinha algumas ótimas, além de ter sido exaustivamente psicografado – e diga-se de passagem a morte fez muito mal ao seu estilo –, houve uma vez um camarada que dizia que Suzana Flag era um espírito que possuía Nelson para narrar sua vida com o objetivo de se eximir de seus pecados, ele citava como exemplo o título da sua “autobiografia” Diário de uma pecadora, e de outro dos seus livros Meu destino é pecar. Ele via nessa recorrência um espécie de arrependimento do espírito que aqui na Terra, se entregara à essa vida mundana. Lembro-me que o sujeito chegou a pesquisar para ver se encontrava alguma mulher que tivera uma vida semelhante à de Suzana Flag. É óbvio que ele encontrou. Dentro de um universo de 43 mulheres, ele fechou em 8 estudou a fundo essas e chegou a três possibilidades. O sujeito conseguiu realizar um simpósio no qual o objetivo seria determinar qual das eleitas seria a verdadeira Suzana Flag. Depois de muitas discussões acaloradas e de debates, chegaram a uma conclusão: na verdade Suzana Flag não era nenhuma das três, mas as três ao mesmo tempo. A teoria vitoriosa dizia que as três se revezavam e que cada hora uma delas ditava a sua história como se o pobre Nelson, além de trabalhar com um cão, fosse ainda uma espécie de cavalo de sirigaita.

Voltando à busca do espírito de Ménard. Tive vontade mais uma vez de ler a dedicatória de meu único volume das obras de Borges: “À (nome coberto com corretivo), pelo fascínio de conhecê-la e poder desfrutar de sua companhia, em palavras, gestos, e emoções. Por tais razões sou eternamente grato, por tê-la conhecido pois, ninguém passa pela nossa vida ao acaso (sic). 19/05/02 de (não consigo identificar a assinatura)”. Deveria mostrar essa dedicatória ao tal do Vigatti. Quem sabe, ele não encontra um sentido obscuro nessas linhas?

O lema “Ordem e Progresso” dentro do vocabulário dos positivistas brasileiros


A atual bandeira da República Federativa do Brasil é, na verdade, uma reformulação pintada por Décio Villares do desenho feito pelo artista francês Jean Baptiste Debret para a bandeira do Império Brasileiro.

Com a proclamação da República, em 1889, algumas versões para o estandarte foram apresentadas; a opção escolhida foi concebida pelos diretores do Apostolado Positivista do Brasil Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, e por Manuel Pereira Reis, catedrático de astronomia da Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Nessa bandeira basicamente se retirou o brasão imperial e o substituiu por um círculo, em que está estampada uma representação do céu em 15 de novembro de 1889, cortado por uma faixa branca em que se lê o lema “Ordem e Progresso”. Essa expressão não tem origem exatamente na fórmula máxima do Positivismo de Augusto Comte: “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”.

A presença desse lema na bandeira se deve à influência definitiva que filósofos positivistas como Luís Pereira Barreto, Teixeira Mendes e Miguel Lemos – além de simpatizantes desse pensamento como Benjamin Constant – tiveram na proclamação da República no Brasil. A expressão já era usada por Pereira Barreto em seus artigos contra o Império e a presença da Igreja no Estado e nos panfletos e livros publicados pelo Apostolado no Brasil.

A filosofia positivista propunha uma reforma completa na sociedade. Essa reforma envolveria uma reelaboração da educação pautada principalmente por uma sólida base ética. Para tanto, Comte propunha que se deveria estudar a sociedade de uma forma análoga à que se estuda a física dos elementos brutos (química, astronomia e física propriamente dita) e a física dos elementos complexos (biologia, fisiologia e medicina), criando assim uma física social (sociologia). Por meio dessa física social, seriam encontradas leis naturais (ou imperativos categóricos) que iriam compor bases para a conduta, estabelecendo o papel de cada elemento dentro da sociedade.

Quando da proclamação da República, os positivistas brasileiros imaginavam que uma nova sociedade brasileira que seria fundada sobre o lema do positivismo, encontrando-se as leis para o progresso dentro da ordem.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Capão do Diabo

– Dindouro, por que você é judeu?
– Ateu.
– Tem diferença?
– Claro. Judeu não acredita em Jesus, mas acredita em Deus. Ateu não acredita em Jesus nem em Deus.
– Pra mim, dá na mesma. Deus e Cristo são a mesma coisa. É Pai, Filho e Espírito Santo, aquela coisa, sabe?
– Sei. Mas para um judeu não é. Jesus é uma coisa e Deus é outra. Jesus era judeu.
– Era não.
– Procura na sua Bíblia que você vai ver.
– Era não. Escuta. É verdade que você já encontrou o Coisa-ruim?
– Não. Não é.
Tenham paciência com o Dindouro. Ele é daqueles que nunca gostou de ser contrariado. Ainda mais na sua fé de ateu. Assumir ter encontrado o Demônio iria abalar um pouco a sua crença de que o Demo não existe.
– Tanto disse que Deus não existe, que atraiu o Chifrudo para o lado dele.
– Ele tem parte com o Malvado. Isso sim. Por isso fala essas coisas.
Quando foi desvelado que o Dindouro havia encontrado o Pé-cascudo ninguém achou muito estranho. Afinal:
– Viu? Isso é bem feito para ele. Fica falando mal de Deus. Dessa vez, eu quero ver.
Embora seja coisa conhecida e sabida de todos, o Dindouro dissimula bem: nega e desconversa quando o assunto vem à baila. O azar dele é que dessa vez teve testemunha.
– Fosse uma, vá lá. Podia ser conversa. Mas duas.
Desse modo, são também duas as versões: uma é do Dindouro. Quer dizer, uma é de quem ouviu o Dindouro contando para alguém. Outra é a versão da testemunha (que pediu para não ser revelada) que espreitou o encontro. A coisa aconteceu mais ou menos assim:
Existe aqui na região um lugar conhecido como Capão do Diabo. O nome é por causa Dele que sobe dos infernos e vai ali para buscar as oferendas que "os seus" deixaram. Ninguém passa lá por volta de meia noite, que é a hora maldita. Porque se o Canhoto encontra um vivente no caminho arranca dele o espírito e o leva para a danação eterna.
O ocorrido se deu num dia em que o Dindouro teve um compromisso particular com uma dona casada lá em Brejo do Antão. Por um azar dos diabos, ele foi pego no durante. O Dindouro, que não é trouxa, tratou de montar num cavalo qualquer e sair assim mesmo completamente peladão em disparada. O marido saiu na sua carreira dele atirando. Sem ter tempo nem escolha, só restou ao Dindouro se embrenhar pelo Capão do Diabo. Ainda não era meia noite, mas como dizem por aqui: "um azar nunca vem sozinho". Não é que, logo nesse dia, o Cão-miúdo chegara mais cedo.
– Opa! Que moda é essa agora, filhote. É promessa ou aposta?
Não sei quem ficou mais surpreso se o Belzebu ou o Dindouro. Afinal, dar de cara com o Bode-preto assim é algo bem fora do normal.
– Eu também já vi.
– Quem?
– Ele.
– O Capeta?
- É.
– Ah, mentira.
– Mentiroso.
Por sua vez, emergir do submundo e encontrar um macho nu em cima de um cavalo é bem mais raro.
– Raro por quê? Ora. Satanás é o Grão-tinhoso, e já deve ter visto de tudo. E se ele já viu tudo, já deve ter visto muito elemento pelado em cima de cavalo branco.
Primeiramente, eu nunca disse que o cavalo era branco. Depois a história que eu sei é essa. Quem me contou falou que o Capa-verde ficou muito surpreso ao ver ali na sua frente um uma variante barbada da Lady Godiva. A versão menos confiável diz que o Dindouro sacou a arma e deu dois tiros no Excomungado, que evaporou numa nuvem de enxofre enquanto soltava uma gargalhada macabra. A outra versão diz que o Dindouro caiu de joelhos e implorou perdão ao menino Jesus e começou a orar e prometeu que dali em diante passaria a ir a igreja todos os dias e se tornaria um cristão exemplar.
– Nenhuma das duas histórias é verdadeira, mas no meu caso a primeira hipótese é mais provável. Mesmo eu não tendo arma e estando nu.
Mas o Cramulhano, em vez de ficar zangado ou amedrontado pelas orações, tomou foi simpatia do Dindouro..
– Pode parar, meu amigo. Pára essa rezadeira brava. Comigo você tem cartaz. É dos meus. Olha só, como você até hoje foi o único que veio aqui assim de peito aberto (e até mais), vou fazer assim: peça um desejo que eu realizo. Pode pedir qualquer coisa.
O Diacho fez ao Dindouro a mesma proposta que fez ao Nosso Senhor, quando O tentou no deserto. Mas como o Dindouro não tem firmeza, nem sabedoria de um Cristo, caiu na tentação de Lúcifer.
Sem nem parar para pensar disse que naquele momento o que mais queria era poder ficar invisível. Essa é a razão de o Dindouro ter hoje o dom de se tornar invisível.
– Por isso que ninguém viu o camarada chegar cavalgando desnudo pela cidade e entrar na sua pensão.
– Está explicado. Tudo se encaixa.
Bom, coitado daquele marido traído. Hoje, o Dindouro nem espera mais ele sair. Toma-lhe a mulher com ele ali deitado na mesma cama. Mas situação está igualmente difícil para todos os maridos da cidade, que ficam sempre alertas e suspeitosos de alguma coisa; sempre desconfiados das esposas. Afinal, o Dindouro sempre foi dado a mulheres que por sua vez já o achavam boa pinta. Invisível, agora, é um perigo.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Como forjar a verdade

Há diversos modos de se refutar uma questão filosófica. Posso dizer que eu já usei o mais estúpido deles. Obviamente (e felizmente), o cenário dessa discussão foi um bar no Bixiga em São Paulo, em meados dos anos 1990. O meu amigo dizia que acreditava na existência de uma verdade absoluta, e eu discordava dele. Na falta de bagagem de ambos, meu amigo resolveu que iria demonstrar a existência de uma verdade absoluta. Ele tinha um copo de uísque nas mãos e saiu-se com essa: "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo". Mais do que depressa, eu me adiantei e coloquei a mão sobre a boca do copo. Ele não teve dúvidas, tascou uma mordida na minha mão até que eu a retirasse do caminho, daí bebeu todo o uísque que havia. E foi assim, de uma maneira nem um pouco ortodoxa que meu amigo provou a existência de uma verdade absoluta.
Entendam que o que meu amigo defendia estava ligado ao essencialismo de Platão e à concepção referencial da linguagem de Santo Agostinho. Ele queria provar a existência de uma entidade metafísica, e não à existência da palavra verdade usada no cotidiano. E esse havia sido o nosso embate. Essa questão é portanto diferente da do meu aluno que via na existência do acaso uma afronta aos desmandos da sua divindade.
Hoje, sei que a última coisa que se deve fazer é refutar uma questão filosófica atirando-se sobre ela. Além disso, é muito fácil refutar a questão "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo" sem tomar uma mordida.
Há algumas formas bem ordinárias como: dizer que por não ter dito exatamente quando e nem exatamente o quanto do uísque beberia, a sentença "É uma verdade absoluta que vou beber deste uísque que está neste copo" não pode ser verificada em absoluto e por isso não tem validade como verdade absoluta. Ou mesmo que ele tivesse dito: Das 23 horas e 30 minutos e 12 segundos até as 23 horas e 31 minutos e 1 segundo, eu estarei bebendo 15 ml do uísque que está localizado neste copo." Ou suponhamos ainda que ele incluísse coordenadas exatas para a sua posição e a posição do copo e tudo mais. Mesmo assim o meu amigo falharia em sua tentativa de provar a existência, do ponto de vista filosófico, de uma verdade absoluta. Por que? Porque eu poderia simplesmente passar a exigir mais e mais detalhes que iriam além dos milionésimos de segundo e dos nanolitros. Até que se esgotassem as unidades de medida; quando poderíamos dizer: "Está vendo, não existem unidades de medida suficientes para atestarmos uma verdade absoluta."
Mas eu prefiro não ir por este caminho. Prefiro apenas dizer que a pergunta "Existe uma verdade absoluta?" é equivocada, e possível somente devido ao mau uso da gramática da palavra verdade.
Cotidianamente usamos a palavra verdade diversas vezes sem que ela nos cause nenhuma cãibra mental. E raramente temos dúvidas de como usá-la.
Compreendemos inclusive os diversos usos que podemos dar a palavras como "verdade".
Deixe-me dar alguns exemplos:
* "A verdade é a melhor camuflagem. Ninguém acredita nela". Max Frisch
* "A verdade brotará da terra, e a justiça olhará desde os céus". Salmos 85:11
Ou, ainda: imaginemos uma situação em que alguém esteja contando algo a uma pessoa, e uma terceira pessoa para reafirmar o que está sendo dito, profira a seguinte frase: "O que ele fala é verdade". Então? Quem melhor usou a palavra verdade?
Não vamos perder nosso tempo para tentar responder a essa questão. Não se pode dizer que exista um melhor uso para a palavra verdade, já que todos os usos servem perfeitamente para dizer aquilo que o falante quer. Em cada um dos casos citados somos capazes de compreender a gramática da palavra "verdade", e, dessa forma, estamos aptos a entender o que foi dito nas três sentenças. E todas são diferentes de usos como "A verdade come cenouras" ou "A verdade rasga todavia", que são usos notadamente equivocados para "verdade".
Desse modo a questão "É uma verdade absoluta que vou beber este uísque que está no meu copo" não está diretamente ligada a questão: "Existe a verdade absoluta?"
No primeiro caso temos um exemplo do uso corriqueiro para verdade (ainda que absoluta), na outra temos uma questão filosófica em que estamos atribuindo características adicionais para verdade.
Assim, eu refutaria não a questão "Existe uma verdade absoluta" (o que pretendo fazer em outro post aqui no "O Gramático". Mas sim o uso de uma "palavra" no uso cotidiano para sustentar a existência de uma entidade metafísica.

* A foto foi tirada por mim embaixo do Elevado Costa & Silva (Minhocão), à altura da Rua General Jardim. Desconheço a autoria do grafite.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O fantasma do abismo

Dizem que morrera asfixiado. Ninguém se lembra muito bem da data. Mas alguns concordam que deve ter sido entre 1932 e 1935, provavelmente maio ou junho – porque chovia muito e fazia frio. Do nome, entretanto, todos se lembram muito bem: Douglas Macário. Era casado, sem filhos e morava na parte baixa da cidade. O que fazia no abismo? Ninguém nunca soube. Sabe-se que a sua viúva – durante o período em que ainda ficou na cidade – todo ano colocava flores na beirada do abismo; onde se supunha estar o cadáver do seu marido. Supunha-se, evidentemente, porque Douglas Macário jamais fora encontrado. Quando houve o desabamento, consideraram perigoso ir até lá retirar o cadáver. Além disso, dadas as proporções do acidente, nunca se cogitou a hipótese de Macário estar vivo. Por mais que tenha sobrevivido à queda (e pelo que dizem, o fez), o deslizamento que o soterrou fatalmente o matara. A esposa (há quem diga que seu nome era Dora outros que era Áurea) aos poucos foi sumindo. Os anos se passaram e só a viam uma vez por semana nas missas de domingo. Era vista, porém nunca notada. Até que foi definitivamente esquecida.
Só se lembraram dela, quando pela primeira vez o fantasma do marido foi visto vagando nas proximidades do abismo. Um jovem que voltava tarde da casa de sua noiva resolveu esticar um pouco a cavalgada e se perdeu. Ao encontrar o abismo, passou a margeá-lo para achar a ponte e por conseqüência a estrada. Topou com um homem sujo de terra que vagava por ali. Quando cruzaram os olhares, viu-se que no lugar dos olhos havia apenas dois buracos cheios de terra. O peão correu o mais que pode, quase caiu do cavalo direto no abismo. No dia seguinte, descreveu a cena para seus amigos na praça central. Foi Otacílio que se lembrou de Macário.
– É Macário.
- Quem?
- Macário.
- Que Macário?
E não é que a descrição batia com o homem com terra nos olhos? Quando foram informar à senhora Macário (Dora ou Áurea), foram informados pela ex-vizinha de que ela havia se mudado para outra cidade.
- E agora?
- Bom, mas mudou-se para onde.
- Até onde sei, foi morar com uns parentes.
- Mas onde?
De factual, não se tinha mais nada sobre a viúva; a não ser especulações sobre certo amante equatoriano que a levara para sua terra. Ou de que havia se tornado beata em Nova Fronteira.
– Vou lá no abismo à noite perguntar ao fantasma o que ele quer e por que ele voltou do além.
Na primeira noite, como havia trabalhado o dia todo e ainda tinha muito trabalho para o dia seguinte, o coitado do Hermes não pôde ir. Jurou que iria na segunda-feira, mas se esqueceu e saiu com os amigos para uma bebedeira e nunca mais tocou no assunto.
O Newtinho, que era kardecista, conversava com sua finada mãe todas as sextas-feiras no "centro". Ele disse que a mãe havia sabido por outro espírito que o Macário ainda "não sabia que estava morto" e por isso continuava vagando por aí. A falecida mãe, segundo o Newtinho, pediu orações para que o Macário recebesse ajuda espiritual para perceber que estava morto. Havia ainda o risco de ele ser obsedado por uns espíritos que gostam de ficar obsedando outros. Mas ninguém deu muita importância, porque logo depois o fantasma foi visto mais uma vez. Ele estava sentado no beiral de uma janela em frente a igreja da matriz. Quem o viu foi justamente o Dindouro. Logo ele. Nunca acreditou em nada, ateuzão das antigas, deu de cara com a alma penada do pobre Macário. O Dindouro sempre foi um camarada muito difícil, e nunca admitiu ou confirmou que vira o fantasma.
– Isso é história desse povo que não tem mais o que fazer. Além do mais, fantasma não existe.
Mas dizem que o Dindouro apareceu naquela noite na pensão onde morava branco igual leite de virgem, falando que vira a assombração. Contaram que o Dindou teve a seguinte conversa com Macário:
– Dindouro.
– Quem é?
– Sou eu, Macário.
– Macário?
– Sim. Eu quero que peçam para o Padre Antônio rezar a minha missa de sétimo dia.
O Dindouro, vendo tratar-se de coisa ruim, sacou o revolver e disparou dois tiros contra a alma do soterrado.
– Mentira! Viram? Eu nem revolver tenho.
As balas passaram direto pelo espectro que desapareceu depois de soltar uma gargalhada.
A quem diga que o diálogo foi outro, e que o fantasma pedia para salvar a sua esposa que estava prisioneira em uma caravana de ciganos. Mas como o Dindouro se recusa a falar no assunto e nega o ocorrido, nunca saberemos o que o fantasma de Macário quis de verdade com a sua última aparição.
O que ninguém sabia mesmo era quem seria esse tal de Padre Antônio. É bem provável que ele se referia ao Padre André, já que estava de frente da Matriz e o padre de lá é o André.
– Já houve um Padre Antônio aqui na cidade?
– Muito tempo atrás teve um; mas acho que o nome não era Antônio, não.
– Então, ou ele trocou o nome do padre ou o Dindouro ouviu errado.
– Tem certeza que ele falou Antônio, Dindouro?
– Ora, vá para a puta que te pariu!
No fim, resolveram perguntar à mãe do Newtinho que era naquele momento a pessoa mais próxima do finado fantasma.
– Ela mandou falar que um espírito de luz acabou resgatando Macário do Umbral. Agora ele vive feliz instalado em um subúrbio de uma cidade espiritual qualquer que não me lembro o nome. Tem até uma namorada lá. Ele agradece as orações de todos.
– Mas e da missa? Ela não falou nada?
Na ausência de informações concretas, foram pedir ao Padre André que rezasse, por fim, a tal missa de sétimo dia.
– Como é que eu posso rezar uma missa de sétimo dia para uma pessoa que já morreu há não sei quantos anos?
– Mas é a última vontade do falecido, Padre. Não pode contrariar.
– Vamos fazer assim. Na próxima missa de defuntos eu incluo o nome do Macário. Está bom assim?
– Ele falou sétimo dia.
Alguém se lembrou que Antônio, na verdade, era o nome do chefe de terreiro local: Pai Antônio de Logun Ede.
– O Macário era mesmo meio macumbeiro.
– O que significa Macário? É alguma coisa a ver com macumba, não é? Vai ver ele falou pai Antônio.
– E pai-de-santo reza missa?
– Mais ou menos.
No fim, por causa da comoção popular em torno do fantasma do abismo – como ficou conhecido o nosso caro Macário na ocasião –, seu nome foi incluído nas preces da missa de defuntos e deram um dinheirinho para o pai Antônio fazer uma oferenda (ou aquelas coisas que se faz em terreiro), mas não verificaram se ele fez mesmo.
Todos acham que o finado ficou muito feliz, porque foi logo depois disso que Macário realizou o seu primeiro milagre.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Retrato do acaso como uma divindade

Um dia um de meus antigos alunos - um dos poucos admiráveis, por sinal – tentou me explicar a sua relação com a divindade a quem devotava sua fé. Ele dizia que não acreditava na existência do acaso. Segundo ele tudo o que existia ou acontecia fazia parte dos planos dessa divindade; e por mais trágicos que parecessem os seus desmandos, tudo sempre conspirava para um bem maior. Lembro-me que na ocasião ele chegou a dizer que "o acaso não existia". Eu o alertei para o risco de se pensar daquela forma (principalmente quando se crê em uma divindade criadora como a dele); já que na ausência do acaso, ele teria de procurar razões para todos e quaisquer elementos e eventos ad infinitum.
Decidi não prolongar a discussão por certo pudor pelo fato de que esse aluno acabara de sofrer um acidente que o deixara paralítico para o resto de sua vida. Além disso, me parecia cruel, num momento como aquele, questionar os fundamentos da fé de uma pessoa na sua condição. Entretanto, esse evento nunca me saiu da cabeça e não sei por que razão me retorna com freqüência. E hoje durante o meu banho matinal essa lembrança me ocorreu novamente. Resolvi, então, colocar aqui no "O Gramático", minha refutação àquela tese de meu ex-aluno.
De certo modo, a confusão que existe na sentença "o acaso não existe" é perceptível. O termo ou a palavra "acaso" existe; somos capazes de compreender o que uma pessoa quer dizer quando nos fala que "nos encontrou por acaso", por exemplo. Contudo, ficamos desconfortáveis quando deslocamos a palavra de seu uso cotidiano e olhamos para ela como se pudesse existir como um evento ou objeto isoladamente. Essa perplexidade decorre talvez de não usarmos de modo adequado a gramática da palavra "acaso".
Eu também não acredito na existência do "acaso" como entidade metafísica que se opõe à existência de uma divindade caprichosa como aquela em que meu aluno acreditava.
Pensar assim nos coloca diante do velho problema de encontrar um substantivo ao qual queremos atribuir-lhe características comuns de outros substantivos, como, por exemplo, "aquela pêra existe"; desse modo "aquele acaso existe". Voltemos à frase "nos encontrou por acaso", aqui vemos que o acaso marca uma ocorrência um "encontro". Algo que acontece e não algo que "existe".
Vamos imaginar que você olhe para um determinado objeto sobre a sua mesa e reflita sobre a existência da queda desse objeto. Ele não está em queda, mas ao empurrá-lo para fora de sua mesa, eis que ela ocorre. Então podemos concluir que ela existe. Mas você olha novamente para o objeto agora, no chão de sua sala, e novamente ele não está em queda.
O dilema do meu ex-aluno estava no uso impróprio da gramática da palavra "acaso". Ao atribuir-lhe uma existência (ou inexistência), ele cometeu um deslize equivalente ao de se atribuir um peso (ou uma cor) a uma nota musical, por exemplo. Como dizem: não é porque algumas coisas foram criadas, que posso inferir que "todas" as coisas foram "criadas", do mesmo modo, existência é uma característica atribuída a algumas coisas e que não necessariamente se aplica a outras.